O centenário de Salim Farhat

Perfis biquenses

Na década de 80, Chicre Farhat, escreveu várias crônicas para O MUNICÍPIO sobre personalidades biquenses, ressaltando nelas qualidades de caráter e de personalidade, muitas vezes despercebidos no dia a dia. Verdadeiras pérolas que, em novembro de 1983, foram reunidas em uma publicação lançada pelo prefeito Gilson Lamha. Posteriormente, Chicre continuou a usar sua brilhante mente para enaltecer outras personalidades. Assim sendo, em homenagem ao autor e aos seus personagens, tudo será republicado.

Naquele longínquo ano de 1928, Bicas ainda balbuciava. Era quase toda ela uma doce paisagem rural.

Mas um imigrante árabe, vindo da outra ponta do Universo, sozinho, aqui residente, com mulher e nove filhos, lutando duramente no meio adverso e ainda desconhecido, mandava estudar no Rio de Janeiro, no então famoso Colégio Pio Americano, seu filho mais velho, Emil.

Informado depois de que outro colégio despontava como um dos melhores e modernos educandários do país, o “Instituto Granbery”, para lá transferiu o filho, arcando com despesas ainda maiores.

Este gesto hoje aparentemente simples, revelava a visão que aquele libanês, pobre mas destemido, já tinha da vida e do mundo.

Poucos naquela época enxergavam o novo amanhã que surgia. Homens de fortuna, de prestígio, nem sequer desconfiavam de que outro comando se firmava entre os povos e as nações, que desafiava todas as forças e fatalmente venceria qualquer batalha: o poder da inteligência, das mentes equipadas para os desafios do futuro.

Ao completar no dia 11 deste mês, o centenário de nascimento de SALIM FARHAT, arrefecidas as paixões, e olhando sua trajetória sob o prisma de um historiador, asseguro que o traço maior de seu caráter foi o da fidelidade. Fidelidade aos irmãos, a quem nunca faltou. A sua família, por cujo zelo e integridade, preservava com a bravura de um guerreiro. Aos amigos, por quem daria a própria vida. (Quem o conheceu sabe que não há exagero no que afirmo).

Sendo assim um homem nítido, de coragem e altivez, suas opções políticas eram respeitadas pelas diferentes lideranças. Participante entusiasta das iniciativas progressistas de nossa terra, sabia comemorar, generosamente, as vitórias da cidade. Sua casa e seu coração estavam sempre abertos. Ninguém, em sua presença, ousaria desmerecer um velho camarada.

Era o “Embaixador” libanês para os patrícios. Além das cartas que ajudava a escrever, o velho Salim sabia de tudo, recebia revistas e jornais da terra natal, e não faltava nunca na hora do aperto.

Certa vez, indaguei-lhe surpreso:

– O quarto da sala está abarrotado de livros, até o teto. A gente nem pode entrar lá.

– São livros de poesia, em árabe, de seu tio Elias – respondeu. Eu comprei para distribuir com os amigos. Ele é um grande poeta.

Em 1939, quando o Emil publicou o “Cangerão”, sua alegria comovia… A todos exibia o livro, triunfante.

Com a vista cansada, pediu-me que lesse para ele o “Cangerão”. Assim o fiz, noites seguidas, no “Bar Memphis”. Ao terminar, nunca mais pude esquecer o brilho de seus olhos…

Ainda com sacrifícios, matriculou-me também no “Granbery”, em 1940. Ia visitar-me todas as semanas. Só deixou de fazê-lo em setembro, daquele ano, quando no dia 06, morreu.

Foi na lição de sua vida tão rica e disputada, que nasceu a ideia, entre nós, da doação do terreno, de onde se ergue hoje o majestoso “CENTRO CÍVICO D. ASSIMA FARHAT”.  Nada o deixaria tão orgulhoso ao ver os filhos devolver à cidade, que tanto amou, o fruto do seu árduo trabalho. E aplaudiria também a escolha do nome daquela admirável mulher, que sempre o inspirou, e ainda jovem viúva, prosseguiu na luta, que juntos enfrentaram na grande aventura da América.

(Publicado no jornal O MUNICÍPIO, de 29 de maio de 1983)