Uma saudade que vem de longe

MARCELO BARRETO

O futebol faz falta, mesmo num momento em que há muito mais do que cuidar, porque faz parte das nossas lembranças

Sábado de manhã, a gente acordava bem cedo, sem os pais precisarem chamar. De chuteiras na mão, a molecada ia se encontrando pelo caminho, atravessando a cidade na direção do Estádio João Varanda. Talvez a maioria nem soubesse que esse é o nome oficial do Campo do Esporte, que era como o chamávamos. O que nos importava era que aquele era o horário reservado para as crianças jogarem futebol de 11 no campo de grama. O treino do Seu Zé Vieira, momento sagrado em que cada um podia se sentir Zico, Roberto, Rivellino, Jairzinho.

Na volta, bebíamos água de mina, numa bica entre o cemitério e o matadouro, e não havia história de terror que nos impedisse de matar a sede do meio-dia, agachados, com as mãos em concha. Depois do almoço, energias recuperadas, talvez até trocássemos uma pelada por pique-lata (uma versão de pique esconde em que o pegador tinha de descer a ladeira atrás de uma lata e batê-la três vezes no chão para acusar os encontrados), bandeirinha (como chamávamos o pique-bandeira) ou queimada. Dessas brincadeiras, num tempo em que futebol ainda não era coisa de menina, elas também podiam participar.

No domingo, o campo era dos adultos. Fácil saber quando tinha jogo: a casa acordava com o cheiro da pomada que meu pai, lateral e zagueiro do Esporte Clube Biquense, passava nas canelas antes de cobri-las com as ataduras que minha mãe enrolava pacientemente, rolando-as sobre a coxa depois de passá-las entre os dedos do pé. Agora no papel de torcedores, nos acomodávamos na faixa de areia entre o bambuzal e o alambrado, víamos o Padula, jornaleiro da cidade, saudar a entrada dos times em campo com foguetes e comprávamos laranjas de um vendedor que tinha um carrinho com um descascador automático, parecido com um apontador de lápis gigante. Guardávamos os bagaços para eventuais protestos contra a arbitragem.

De segunda a sexta, a pelada era na sede social do clube, que ficava na minha rua. Enquanto esperávamos o horário de abertura, brincávamos de dupla na rua, usando o muro como gol. Mal a porta de ferro se levantava, entrávamos correndo e pulávamos a grade, porque a pressa de entrar na quadra era grande e o portão ficava – por alguma razão misteriosa – do outro lado. Quando assumia uma diretoria nova, o porteiro não deixava e voltava a nos pedir para mostrar a carteirinha. Uma ou duas semanas depois, já relaxava de novo.

O piso da quadra era formado por blocos de cimento. Entre eles, havia um espaço do tamanho certinho da capa de pele dos nossos dedões. Sabíamos disso porque jogávamos descalços e volta e meia elas ficavam ali (o sinal era o rastro de sangue que se seguia a um chute mais rasteiro). A bola era dente de leite, de borracha. Quicava muito e pegava efeitos imprevisíveis.

Em julho, nas noites de frio antes de irmos para a Exposição Agropecuária, cedíamos nosso solo sagrado para o campeonato de futebol de salão da cidade. Do muro da piscina, vi meu padrinho Nevito, já de cabelo branco, dar um chapéu com aquela bola pesada tendo como espaço pouco mais do que a marca do escanteio.

Foi por essas e outras lembranças que o futebol passou a fazer parte da minha vida. E é por elas que, embora haja coisas muito mais importante para cuidar agora, ele faz falta.

(Transcrito do jornal O GLOBO deste domingo, 05 de abril de 2020)