Um causo à parte / Memórias

Num entardecer

Quando minha mãe dizia: “Vamos sentar lá no Grupo”, era a senha para eu dar cambalhotas de alegria… Existia uma mureta que cercava o gramado do Grupo, que, na verdade, funcionava como um banco imenso. Tinha uns 50 metros de extensão, mas o que me dava contentamento era a certeza de comprar o picolé do Pedro Machado.

Minha mãe levava sempre um dinheirinho para isso. Enquanto ela conversava com as amigas, eu já estava na fila do picolé. O estabelecimento era uma uma mistura de sorveteria e bar. Tinha um atendimento muito legal. Tanto ele, como sua esposa, Aparecida, faziam questão que nós saíssemos de lá contentes…

Drops Dulcora, chiclete Ping-pong, salgadinhos e tudo que a criançada gostava. Mas, o nosso principal motivo ali era o picolé… Meu favorito, o de creme. Tinha vários sabores: amendoim torradinho, e o de coco, com uns pedacinhos que no final nós mastigávamos.

Entre um picolé e outro, brincávamos de pique na grama do Grupo, íamos até a pracinha dos aposentados, subíamos na grade do hospital, enfim, deitávamos e rolávamos…

Bicas, criança!

Um causo à parte / Memórias

Armazém do Sr. Armando

Minha mãe me deu a listinha de compras e a sacola e foi dizendo: “Traga logo que vou precisar para hoje.”

Rapidamente eu já estava virando a esquina do Grupo, passei pelo Pedro Machado e cheguei no armazém do Sr. Armando. Na entrada vi um rolo enorme de fumo. Dona Leonilda queria linguiça “Maria Rosa”. Um dos empregados estava arrumando as compras que o caixeiro estava esperando lá fora.

Encostei no balcão, Sr. Armando, calmo e sorridente, pegou a minha lista e colocou os pedidos na sacola: macarrão Santa Isabel, um pau de sabão, salsicha em lata, dois pacotinhos de Ki-suco e outras coisas. Sr. Armando, durante muitos anos, tocou seu negócio com uma grande freguesia e muita honestidade.

Ganhei uma marola de brinde, peguei, agradeci e saí logo. Mas deu pra ver o Mariano pegando o alpiste para seus pássaros e a Íris com um pacotinho de biscoito “Maria”…

Bicas negociando!

Um causo à parte / Memórias

Macumba na encruzilhada

Noite alta de sexta-feira, nossa turma mista, com crianças e jovens, estava voltando pra casa. Avistamos as velas acesas na encruzilhada da Baeta Neves com a José Soares, no pé da ponte.

Um despacho feito com todo esmero; galinha preta, cocadas, velas coloridas, cachaça e um alguidar, cheio de farofa. Formigueiro foi logo pegando a pinga, abriu a garrafa com os dentes e tomou um gole. Panelão encheu os bolsos de cocadas e saiu comendo, Lelé pegou carona na pinga e, por cima, chutou a galinha pra dentro do córrego, enquanto Otto mijou nas velas…

No outro dia de manhã, estávamos sentados na ponte falando sobre o acontecido e aí chegou o Formigueiro reclamando de ter passado mal e com uma dor de cabeça desgraçada.

Logo em seguida, Lelé surge mancando com o pé parecendo uma pata de elefante. Depois veio o Panelão dizendo que estava com piriri.

Dona Vitalina, mãe do Mosquito, passava por ali, escutou nossa conversa e sentenciou: “Vocês precisam respeitar a crença dos outros… Uma hora dessas a conta vem mais alta”.

Nós ficamos meio sem graça, quando o Lelé falou: “É, Dona Virtalina tá certa, precisamos criar juízo”.

Bicas mestra…

Um causo à parte / Memórias

O MUNICÍPIO está recordando os pitorescos contos do livro “Bicas, um causo à parte”, do saudoso Vasco Teixeira, prestigiado ex-colunista do jornal. Um biquense que também fez história nas cidades de São José dos Campos (SP) e Paraisópolis (MG), onde estava radicado. O Tiãozinho da Rua do Brejo era multifacetado: metalúrgico, político, cronista, escritor, artista plástico e mais.

Ao som do rádio

Na hora marcada, às 18 horas, minha mãe colocava o copo d’água na beira do rádio, pedia silêncio e assim começava a oração da Ave Maria com Júlio Louzada, na Rádio Tupi. Um programa que ficou quase cinco décadas no ar.

Minha irmã, às vezes, ajoelhava e seguia sem pestanejar todo o ritual que vinha nas ondas do rádio, que ficava numa prateleira no centro da sala. Meu pai encostado no portal da cozinha, também ouvia atento. Eu ficava pra lá e pra cá…

Júlio, com sua voz aveludada, mandava bem e conseguia paralisar todos os afazeres de muitos lares naquele horário. Era quase uma obrigação ouvir todos os dias a Ave Maria. Virou moda, além de expressão coletiva da fé.

Terminado o programa, às vezes, tomávamos um gole da água que se tornou benta por estar ao lado do rádio. Dona Ana dizia que era bom para criarmos juízo e também curava doenças. Assim terminava mais um dia de rotina.

Bicas orando!

Um causo à parte / Memórias

Bituca ia dobrando a esquina da Rua do Brejo, com um fecho de lenha na cabeça, quando foi abordado pelo Valdir do Cesário.

O problema era um sumiço de felinos nas cercanias. Valdir, sempre educado, perguntou: “Bituca, o que o leva a comer os gatos da nossa rua?” Bituca, que era mais direto, respondeu: “Quem te falou que faço uma maldade dessas?”

Nisso, Sissi do Sr. Otto, entrou de sola: “Quem falou que você não faz!? Me disseram que foram em sua casa e viram o couro do meu rajadinho pendurado no seu varal”.

O exterminador de felinos desceu o fecho de lenha e sem muita cerimônia rechaçou: “Imagina? Os restos mortais no meu quintal são de coelhos que eu caço, vocês estão desinformados!”

Valdir, com o humor de sempre, satirizou: “Tá certo meu amigo, mas cuidado com os seus coelhos que estão presos, devem estar doentes, pois à noite eles miam pra caramba”.

Bebete ouviu tudo, balançou a cabeça e murmurou: “Esse não tem jeito mesmo”. Nós continuamos a brincar de bandeirinha…

Bicas felina!

Um causo à parte / Memórias

A volta do ferroviário

Zé D’Onofre, maquinista da Maria Fumaça, chegou na Estação Ferroviária, depois de quase uma semana viajando e, com o guarda pó cheio de fuligem, resolveu, antes de ir para casa, dar uma passadinha no bar do Sr. Arlindo, para tirar a poeira da garganta. Afinal, ninguém é de ferro.

O botequim ficava em frente à Praça dos Aposentados. Tomou todas e foi cambaleante, descendo a Rua José Soares, em direção à Rua do Brejo, com sua capa que ia até o chão e um balaio contendo moringa, cobertor e outros apetrechos…. cantarolando: “Viva o doutor Oliveira/Viva o doutor Oliveira”.

Parou e encostou no poste que ficava em frente ao campinho e, sem nenhuma cerimônia, tirou a água do joelho. Olhou para nós e disse: “Vocês sabiam que a única fêmea mais bonita que o macho é a mulher? Pois é, e eu que tenho lá em casa aquele tribufu, não tive sorte, e é por isso que bebo…”

Chegou na ponte e fez um discurso para o córrego. Bastante dominado pelo alto teor etílico, passou perto da casa da Durica e gritou: “Antônio Moraes, herói brasileiro, defendeu o Brasil na Itália, merece uma estátua”. Já subindo a Necésio Silva, fez elogios ao Sr. Otto.

E, finalmente, chegou em casa gritando palavrões e fazendo gestos obscenos. “É aqui Geralda, hoje você me paga”. Geralda recolhe suas coisas e puxa-o para dentro. Depois da ressaca, nosso ferroviário, não se lembrava de nada…

Bicas aos goles!