Um causo à parte / Memórias / O Direito

O Direito

Naquele momento era bobagem pedir para a minha mãe alguma coisa… ela ficava com o ouvido colado ao rádio roendo as unhas. Seu semblante variava de acordo com a voz de cada artista…

Isabel Cristina estava no colo de Mamãe Dolores, e as duas chorando copiosamente. Dom Rafael, esbravejando, deu um soco na mesa e disse: “Da próxima vez que você facilitar o encontro de Isabel e aquele energúmeno do Albertinho Limonta, vou te mandar…”

Nisso a sintonia do rádio desapareceu. Minha mãe não conseguindo ajeitar o dial, me chamou com urgência. Quando eu consegui sintonizar, já havia acabado o capítulo… Ela nervosa, saiu resmungando: “Você não presta pra nada”. Chamou a comadre Luzia do outro lado da cerca querendo saber o que aconteceu. Luzia respondeu: “Dom Rafael vai mandar Mamãe Dolores de volta para a senzala”. Minha mãe, inconformada, queria matar Dom Rafael…

“O Direito de Nascer” foi a novela mais famosa que aconteceu nas ondas do rádio. Virou até marchinha de carnaval ( Ai, Dom Rafael, eu vi ali na esquina / O Albertinho Limonta beijando a Isabel Cristina…).

Bicas radiante!

Um causo à parte / Memórias / Apagando o passado

Apagando o passado

Minha mãe estava podando as roseiras do nosso jardim, e eu estava sentado na mureta, olhando os carpinteiros trabalhando do outro lado do córrego.

Dona Cota, nossa vizinha, vinha com sua elegância costumeira, inclusive, debaixo de uma sombrinha colorida, que estava na crista da onda. Parou e comentou com indignação a demolição do hospital. “Ana, você está presenciando de camarote a derrubada de uma das mais belas construções que Bicas tem.” Minha mãe não deixou por menos: “Dona Cota, meus filhos nasceram aqui em casa, mas tenho dois netos que nasceram no hospital.

Foram as únicas vezes em que entrei lá. Sempre achei que os balaústres ingleses e os corredores dom palacete do Barão coisa de cinema, além de dar um ar aristocrático `Praça dos Aposentados e ao Grupo…” Dona Cota apontou o dedo em direção à demolição e com os olhos umedecidos observou: “Deveria haver uma lei que proibisse esse descalabro.”

“Outro dia fizeram a mesma coisa com o casarão do Coronel Joaquim José de Souza. A família do Barão de Catas Altas, talvez nem saiba desse malefício contra o nosso patrimônio”, continuou… “Uma cidade que não preserva sua cultura patrimonial não tem alma. Certamente, vão construir algo que ninguém vai notar…” Eu, impávido ali, vendo o gurpião cortando uma enorme peça de madeira que sobrou do caramanchão que ficava na parte interna do hospital. Dona Cota se foi… e na desatenção de minha mãe um espinho espetou-lhe o dedo…

Bicas desaparecendo!

Um causo à parte / Memórias / A morte do suíno

A morte do suíno

Depois de mais de seis meses que o porco estava no chiqueiro, meu pai me pediu para recolher o máximo de folhas secas de bananeira. Era para o sacrifício do capado. As folhas serviam para sapecar seu couro. Na outra frente apareciam as facas amoladas, tachos e todos os outros apetrechos…

Antes do dia clarear, Romão deu um golpe certeiro no coração, e o berro do suíno acordou a vizinhança. Era comum esse acontecimento em muitas casas naquele tempo.

Depois de sapecado, raspado e lavado, o porco era devidamente destrinchado. Toda a família participava, cortando o toucinho e separando as partes. O produto principal era a gordura, pois quase não se cozinhava com óleo naquela época.

Mais tarde, quando estava terminando o serviço, minha mãe preparava alguns pratos com torresmo, chouriço e outros pedaços para eu entregar aos vizinhos. Fazia parte do ritual.

Nunca os pratos voltavam vazios e assim nossa comunidade estava sempre ligada numa parceria de irmandade e convivência pacífica…

Bicas vivendo bem!

Um causo à parte / Memórias

Respeitável público

Quando o circo ia estrear, era uma festa enorme, principalmente, para as crianças.

Antes do primeiro espetáculo, já se sabia de quase tudo que ia acontecer, pois a propaganda na cidade era outro espetáculo à parte…

Entrávamos por um corredor longo, já maravilhados com o que veríamos lá dentro. Guloseimas diferentes, vendidas por alguém fantasiado, davam a dimensão da adrenalina do show que estava por começar.  Arquibancada de madeira, aquela lona terminando em um mastro que apoiava o trapézio, que era uma das principais atrações.

O picadeiro, onde os palhaços nos tiravam deliciosas gargalhadas, era o lugar mais visado do circo. Meu coração batia acelerado, meus olhos nem piscavam só de pensar em ver o domador dentro da jaula do leão. Tudo isso antes de começar…

Quando o mestre de cerimônias entrava em cena, sob aquele jogo de luzes, e anunciava a primeira atração, o silêncio dominava a plateia, todos extasiados, prontos para a descontração…

Bicas alegre!

Um causo à parte / Memórias

Piscinão do Zé Retto

Foto: João Batista Marques Souza

Nossa Bicas nunca teve rios caudalosos, nem muitos lugares para nadarmos, porém existia a lagoa do Zé Retto, que era uma ótima opção para nos refrescar no verão.

Sempre arranjávamos um jeito de aparecer por lá. Saíamos da nossa rua em bando, atravessávamos a cidade e lá chegávamos. Era muito comum a molecada de outras ruas irem para o mesmo destino…

Aprendi a nadar lá, mais o que mais eu gostava era ver o Samir Haddad boiando na parte mais funda, parecia que estava dormindo.

Quando aparecia uma câmara de ar de caminhão animava a festa. Os corajosos ficavam em pé, em cima dela, e davam mergulhos. Era sensacional.

Tinha gente que fazia piquenique o dia inteiro, muita alegria com simplicidade. Eu chegava em casa quase escurecendo e muito cansado de tanta estripulia…

Bicas singela.

Um causo à parte / Memórias

Galinha Pintadinha

Rolava na maior tranquilidade nossa peladinha rotineira no campinho na Rua do Brejo. De repente, Dona Ivone saiu da sua casa com uma galinha carijó debaixo do braço e um ovo na mão. Parou em frente a casa da vizinha e começou a xingar.

Sissi apareceu na janela e o bate-boca engrossou e aumentou de volume… Dona Ivone furiosa, reclamou: “Sua galinha botou um ovo em cima da minha penteadeira que acabei de comprar, também chiscou arranhando o verniz e quase quebrou o espelho de tanto dar bicadas”.

E continuou: “Da próxima vez que a galinha aparecer por lá, vai direto para a panela”…

Sissi rebateu: “Minha galinha não tem nada com isso, você quer é fazer propaganda daquela coisa horrorosa que tá lá na sua casa, pois ninguém deu bola para aquele boco moco que você comprou”.

Dona Ivone espumando pespegou: “Boco moco é o seu marido que não serve pra nada”.

Sissi não deixou barato: “Uai! não sabia que você tinha testado ele. Aqui em casa ele funciona muito bem, mas é enjoado e não gosta de qualquer buraco” …

Nisso, a galinha carijó escapou. Dona Ivone possessa atirou o ovo em direção a Sissi explodindo na janela com aquela gema amarelinha escorrendo. Sissi se recolheu. Dona Ivone voltou para casa pisando duro, e nós reiniciamos a nossa pelada…

Bicas barraqueira!