Um causo à parte / Memórias / Cerveja estupidamente

Cerveja estupidamente

Era semana de Carnaval. Meu pai me pediu para ir lá no bar e chamar o Sebastião Miúdo, pois estava na hora dele se barbear. O tal bar ficava pertinho da barbearia, na esquina onde, mais tarde, funcionou o Espigão. O bar era nada menos que o Bar do Zé de Brito. Além de servir tremoços, quibe cru e outros tira-gostos, a coqueluche da casa era sem dúvida a cerveja, estupidamente gelada.

O Bar do Zé de Brito era o favorito dos ferroviários. Vivia lotado… mesas na calçada e um burburinho danado. O diferencial era uma geladeira enorme com portas de madeira que gelava quase um caminhão de cervejas (Portuguesa ou Brahma) casco escuro ou claro. As favoritas da clientela.

Chamei o Miúdo que estava saindo, quando Tachão gritou: “Deixa sua parte paga… esse truque seu de sair à francesa não cola mais”. Abelardo, com seu bigodão, olhou para o Ciro Malaquias e carimbou: “Da outra vez quem deu o golpe foi o Garrafinha”. Dequinha, que era outro cascateiro se fingiu de morto… Tudo resolvido, eu e o Miúdo já estávamos saindo, quando a freguesia começou a cantar o refrão de sempre: “Essa Brahma tem mosquito, não bebo aqui vou beber no Zé de Brito”.

Bicas esquentando os tamborins.

Um causo à parte / Memórias / Pulando a cerca

Pulando a cerca

Em frente de minha casa, na Rua do Brejo, do outro lado do córrego, o Sr. Luiz Longo cultivava um pomar com muitas frutas: laranjeiras, bananeiras e outras eiras…

Eu e meu amigo de peraltice, Maninho, atravessamos o córrego e pulamos a cerca. Silenciosamente, começamos a encher o embornal com as laranjas serra d´água…

De repente, um grito!!! “Seus moleques safados”, e logo em seguida um estampido, que parecia um tiro. Saímos em disparada, pulamos o muro do grupo e nos escafedemos. Mais tarde, quando cheguei em casa, fiquei sabendo que o tiro foi dado pelo Braizinho Lamorga (aquele que fazia regadores) e atingiu o braço da minha irmã Lurdinha que estava na janela de casa…

Deu o maior sururu… prenderam o atirador e minha irmã foi parar no hospital, com ferimentos leves. Contei pro meu pai que eu estava no local do crime, pois só viram o Maninho. Levei uma reprimenda daquelas. Ele pediu a minha irmã para retirar a queixa e o Braizinho saiu do xilindró no mesmo dia.

Quanto ao meu amigo Maninho, não sei o que aconteceu com ele. Goty, seu pai, era uma fera. Acho que levou alguns safanões. Foi só um acidente de percurso. Logo tudo voltou ao normal e nós continuamos moleques como sempre…

Um causo à parte / Memórias / Ô dona Maria

Ô dona Maria

Quando não existiam para nós produtos orgânicos, uma carrocinha recheada deles já desfilava pelas ruas de Bicas, vendendo-os de porta em porta.

Hoje, isso é luxo só… Quando Tamaduro apontava em qualquer esquina de qualquer rua, era motivo de alegria e satisfação, alegria para nós que adorávamos seus bordões: “Dona Maria!!! Mamão, banana e tomate tá maduro, venha ver como tá bonita a mandioca do Tamaduro! Moça bonita não paga, mas também não leva!”, bradava ele.

Umas beatas riam, outras, torciam os narizes, mais ele prosseguia: “Abóbora putaiada” (por talho).

Nós, sentados na ponte, ríamos pra valer… Nunca soube o nome verdadeiro daquele mulato forte e pau para toda obra. Vendia verdura de manhã, e, à tarde, pegava seu machado e ia rachar lenha, na cooperativa, ou na casa de alguém. Sempre com disposição e bom humor…

Um personagem que sempre alegrou o dia a dia de nossas vidas, numa época ingênua…

Bicas natureba!

Um causo à parte / Memórias / Tira Couro

Tira Couro

Quando ainda era mocinha, Bicas teve seu primeiro caso de crueldade. Ali por perto dos anos quarenta, havia na parte alta da cidade um malandro de fato… Zé Pretinho, mulato vindo não se sabe de onde, sentou praça nas imediações da zona boêmia.

Jogava capoeira, tinha uma enorme habilidade com a navalha, era encrenqueiro, rufião e gigolô… Ele tinha um caso com a mulher de um vizinho, que quando descobriu, foi tirar satisfações. Zé Pretinho deu-lhe uma surra e ainda tripudiou: “Não faça nada com ela, senão, vai apanhar novamente…”

Tempos depois, Zé Pretinho foi encontrado morto perto da zona, sem a pele de quase todo corpo, inclusive do rosto. O couro do malandro foi dependurado numa porteira de uma fazenda nas bandas do campo do Leopoldina… Uma testemunha viu sangue descendo junto com a chuva, rua abaixo, mas não identificou quem cometeu o crime.

A população, apesar de perplexa, sentiu-se aliviada… A rua onde aconteceu o crime recebeu o apelido de “Tira Couro”. Nós que morávamos na parte baixa, achávamos que toda parte alta se chamava Tira Couro…

Bicas bárbara!

Um causo à parte / Memórias / A tradutora de sonhos

O MUNICÍPIO está recordando os pitorescos contos do livro “Bicas, um causo à parte”, do saudoso Vasco Teixeira, prestigiado ex-colunista do jornal. Um biquense que também fez história nas cidades de São José dos Campos (SP) e Paraisópolis (MG), onde estava radicado. O Tiãozinho da Rua do Brejo era multifacetado: metalúrgico, político, cronista, escritor, artista plástico e mais.

A tradutora de sonhos

O jogo do bicho foi durante muito tempo uma forma de se divertir e se associar. Ninguém ficou rico com o jogo. Acertar no milhar, o maior prêmio, era muito difícil. Depois, perdeu o glamour para outros jogos e acabou caindo na mão do crime organizado…

No período de minha infância e juventude, na Rua do Brejo, tinha uma pessoa iluminada. Sua especialidade era interpretar os sonhos e traduzi-los num palpite. Dona Doca tinha uma margem de acerto enorme. Era comum vizinhos contarem seus sonhos pra ela, na intenção de fazer uma fezinha.

Ela dizia, com muita esperteza, que a química só valia para os sonhos dela, mas não se negava…

Seu cambista preferido era o Mosquito, que a ajudava a traduzir e a incentivava nos palpites. Um dia Doca disse para ele que tinha sonhado com um beija-flor mamando numa cadela. Mosquito fez as contas e sapecou: “Borboleta e cachorro”. Doca retrucou: “Pode ser vaca, também, ou cabra…”. Ficaram por ali fazendo as contas, até que finalmente se acertaram. Fizeram vários passes e ternos, mas deu mesmo foi o terno; borboleta, cabra e cachorro…

D. Doca recebeu uma grana legal, deu naturalmente a porcentagem do Mosquito e pagou pirulito para a molecada.

Bicas contraventora.

Um causo à parte / Memórias / Entrevero no galinheiro 2

Entrevero no galinheiro

Lá em casa estavam fazendo uma arrumação no galinheiro para botar a morada das galinhas em ordem. Meu pai passava caiação nas paredes, minha mãe ajeitava os ninhos e limpava os poleiros…

A carijozinha tá querendo chocar novamente!!!, exclamou solertemente D. Ana. João Belo aproveitou e encaixou: “Amanhã o Uricão vai me trazer uns ovos azuis lá de Ponte Nova, que encomendei”. “Deus me livre!!! E se der pintinhos de três pés?”, rebateu ela. Meu pai retrucou: “Calma, são ovos normais de galinhas, só as cascas que são azuis e vai ser bom para renovar nosso galinheiro…” Minha mãe, meio cismada, não respondeu…

Terminados os trabalhos, meu pai disse que precisava resolver a situação do galo legorne, pois ele estava muito velho e não dava mais conta do seu serviço. Minha mãe falou que era melhor leva-lo até à casa da Dona Ciloca, para dar fim nele, pois comer o galo do próprio terreiro dava azar e poderia trazer desgraças…

Era costume essa troca quando o galo principal do quintal chegava ao fim da linha. Logo nasceu uma ninhada com mais de dez pintinhos e a carijozinha cuidava com muito esmero de todos que tinham os pés normais…

Bicas cacarejando!