Volte logo comandante

O maior dos nossos dramaturgos, Nelson Rodrigues, dizia melancolicamente: “o brasileiro é um impotente do sentimento”.

Bem feitas as contas, a frase é esmagadora… Há pessoas que não aplaudem jamais, não incentivam, são murchas de coração. Faça o cidadão o que fizer. Realize obra notável, tome medida corajosa, ajude em silêncio, espontaneamente – e não recebe uma só palavra, um cumprimento sequer de apoio e reconhecimento. É uma gente seca, árida, que não sorri nem chora nunca…

Não sei se no fundo de certas criaturas, nas dobras de seu caráter, existe escondida aquela nossa velha conhecida – a inveja, o despeito pelo talento alheio. Não sei se tudo se resume numa palavra: ignorância, pequenez. São criaturas que não enxergam além do seu mundo triste e perverso, e se desmascaram mesquinhas e inúteis.

Mas se amargamos com náuseas, os que nada contribuem, outros são, para alegria e consolo cidadãos prestantes, sempre atentos ao drama de cada um, lutadores infatigáveis pelo bem comum, pelo progresso biquense, a oferecer o calor da amizade e a bondade do seu coração. E desmentindo a cada passo o grande dramaturgo.

Aí temos o nosso JOSÉ MARIA VEIGA. Quem não o conhece em Bicas, ou melhor dizendo, quem não o estima? Qual o conterrâneo de qualquer segmento social, que não identifica logo esse nobre biquense, cordial e prestativo, capaz de se emocionar ao menor gesto de afeto ou de sofrimento. E de aplaudir com justiça e cavalheirismo, de peito aberto, fraternalmente.

Pois nestes dias que se viu afastado dom Comércio, de nossa gente, para tratamento de saúde, em Juiz de Fora, o “Zé Maria” nem pode imaginar o quanto é querido, e sua falta é sentida.

Estou aqui em seu jornal (comandado por ele, com fibra e destemor, há mais de meio século) rabiscando estas notas, e pensando que há momentos de grandeza no espírito humano, capazes de afastar as ondas de descrença e pessimismo, que por vezes nos afoga e nos desanima.

Nesta redação, cercado de tanta fé e de puro idealismo de uns poucos homens (o Sebastião e o Dininho), vem-me a força e a certeza de que “os impotentes de sentimento” serão derrotados, como todo dia nos ensina a generosa e rica vida de José Maria Veiga.

Volte logo, comandante.

(Publicado no jornal “O MUNICÍPIO”, em janeiro de 1982)

Ele se chama Irineu Guimarães

Sob o peso dos anos, um homem, com a sacola, dirige-se aos transeuntes em plena Rua Halfeld, em Juiz de Fora, pedindo-lhes auxílio para os seus meninos.

A cena é inusitada, comovente, e provoca comentários dos pequenos grupos que logo se formam.

Aquele homem é um antigo reitor e professor de inglês aposentado de um dos maiores colégios deste país, o Instituto Granbery. Ele se chama Irineu Guimarães.

Sua trajetória de educador é página de bronze, que não se apagará jamais da memória nacional. Gerações sucessivas ouviram dele as grandes lições de idealismo e fé. Vocações foram despertadas, caminhos se rasgaram, horizontes se abriram, responsabilidades foram reclamadas, no exemplo e na firmeza daquele mestre generoso, culto e indomável.

Nada o desanimava na crença e no amor aos moços, que um dia iriam comandar os destinos de sua gente. Sabia de sua alta e responsável missão. Ninguém o excedia no patriotismo consciente, que não onera os cofres públicos, e nada reclama da nação. Ele ali só estava para atender a vocação de servir, de ser útil à comunidade e ao futuro.

Este cidadão ímpar, que dedicou uma vida inteira a serviço de uma das mais ingratas e injustiçadas profissões, em nossa terra, afastou-se, finalmente, da dura trincheira, após sofridas canseiras, com mísera aposentadoria de um salário mínimo da época.

E dele não se ouviu uma palavra sequer de mágoa ou incompreensão. Ao contrário, isto é que o dignificou e o elevou ainda mais no conceito e na gratidão dos que têm o privilégio de conhecê-lo.

O velho professor aposentado não havia ainda encerrado o belo tempo de sua vida. E de novo pôs-se a caminho, a carregar pedras e a madrugar os dias, para abrir nova trincheira. Com seu prestígio e sua legenda, que já ultrapassava as fronteiras do país, foi erguendo um a um, com as doações que chegavam de todos os cantos, os pavilhões da solidariedade humana, o Instituto D. Selva, na pequena cidade de Guarará, onde abriga, alimenta, veste e educa dezenas e dezenas de crianças pobres e desamparadas.

Vários prédios já estão a marcar a presença de uma figura singular que enche de orgulho os contemporâneos.

Hoje, com mais de oitenta anos, o professor Irineu Guimarães ainda prossegue, com uma energia de predestinado. E estas linhas, que agora escrevo são breves, como se fosse uma visita, pois não pretendo ocupar-lhe o tempo precioso, que ele tem para devotar aos seus meninos.

(Publicado no jornal O MUNICÍPIO, em março de 1982)

Gentil, homem plural

Um dia ele adoeceu. E preocupou-se com o mal que o atormentava. Mas não se entregou. Do fundo de sua alma, forte e indomável, encontrou reservas de energias para uma promessa tão inusitada quanto corajosa: “se eu me curar, vou construir uma Igreja”.

E o milagre aconteceu. Não o da cura, que, afinal, seu estado não era tão grave assim. Mas o milagre de um homem só, desassombrado, bater em todas as portas, reunir vontades, despertar consciências, e erguer no alto de sua fé, a Igreja do Gentil…

Eu não conheço proeza igual. Pois não foi o dinheiro de Gentil Corrêa de Almeida que prevaleceu. Ele não o tinha suficiente para tal obra. E mérito não haveria. A bela Igreja que lá está, de pedra e cal, de tijolo e ferro e cimento, custou sobretudo o suor e a raça de um cidadão de fibra.

Sua sensibilidade levou-o a erguer também o Lactário Angelina de Almeida. Outra iniciativa de amor, de solidariedade humana, que diz muito a tanta gente fria e desavisada, e dá a medida de sua têmpora de cristão militante.

Ex-prefeito, vereador e presidente da Câmara inúmeras vezes, fundador e líder da Cooperativa de Leite, antigo sócio no Cine São José de Francisco Retto Filho (outra grande figura biquense), Gentil Corrêa de Almeida é padrão de civismo, de crença nos valores do espírito e do trabalho.

A idade não lhe marcou os dias, nem lhe arrefeceu o ânimo, nem o fez amargo, ausente, egoísta. Seu caminhar é de permanente doação, de ativa presença nas coisas, nos fatos, na história desta cidade.

Exaltá-lo é dever, como exemplo para gerações, é honra, numa hora angustiada, de tanta desesperança. Gentil é homem plural, de muitas vidas. Impossível vê-lo afastado dos nossos problemas, esquivando-se, fingindo desconhecer o drama alheio, recusando-se na fraterna ajuda.

Nascemos em 5 de março. Para orgulho meu, temos em comum, ao menos, a mesma paixão por Bicas. Um dia subirei até sua Igreja para rezar e agradecer sua generosa existência.

                (Publicado no jornal O MUNICÍPIO, em 16 de junho de 1983)

Criaturas de Deus

Perfis biquenses

Na década de 80, Chicre Farhat, escreveu várias crônicas para O MUNICÍPIO sobre personalidades biquenses, ressaltando nelas qualidades de caráter e de personalidade, muitas vezes despercebidos no dia a dia. Verdadeiras pérolas que, em novembro de 1983, foram reunidas em uma publicação lançada pelo prefeito Gilson Lamha. Posteriormente, Chicre continuou a usar sua brilhante mente para enaltecer outras personalidades. Assim sendo, em homenagem ao autor e aos seus personagens, tudo será republicado, a partir de agora.

Criaturas de Deus

Todo dia, às cinco da manhã, chova ou faça sol, uma extraordinária mulher sai de casa, quieta e humilde, para cumprir um dever que sua formação cristã lhe impôs: dar banho nos velhinhos do Asilo Paulo de Tarso. São mais de trinta. Indago à consciência desta cidade: há gesto maior de altruísmo, de pungente conteúdo humano?

Em momento de tanta mesquinharia, de desenfreada ambição, quando a goela dos agiotas e a maldade dos velhacos mais se arreganham, o “trabalho” de D. Felícia Viana é instante fraterno de paz, de inspiração divina. Onde d. Felícia foi encontrar tamanho desprendimento e ternura? O que a faz assim tão pura, tão amiga daqueles que o mundo largou (ou os parentes?) e amargam a cruel solidão.

E o que dizer de Jaime Florentino de Souza? Ele é o baluarte do Asilo, o coração que primeiro pulsa, o espírito encorajador, o grande comandante da mais comovente e justa batalha do homem: a luta em prol dos mansos e mais fracos, a solidariedade idealista ao decaído, o socorro certo na escura hora do aperto, a mão bem-aventurada, que acolhe, espalha bênçãos e faz renascer esperanças.

Eu bem me lembro dos mendigos e dos velhos esquecidos que dormiam na plataforma da Estação, maltrapilhos, doentes, acossados pelo frio, a fome, e pela nossa álgida indiferença. Onde eles estão agora? Por que não se os vê mais, um sequer, em nenhum canto de Bicas? Aqueles restos humanos que nos deprimiam e envergonhavam, que rumo tomaram? Não perguntem aos ricaços, aos graúdos, porque estes têm outros afazeres, não perdem tempo com bobagens que não dão lucro, nem aumentam o capital. E nem queiram saber o “valor” da contribuição deles para o Asilo… Perguntem, sim, a Jaime Florentino de Souza, este admirável cidadão, cuja trajetória é um hino de bondade, de calorosa presença. Um homem modesto, que só conheceu o trabalho, e tudo oferece aos nossos irmãos infelizes, que o egoísmo marginalizou e a cegueira feroz não foi capaz de distinguir em seu sofrimento e abandono.

Jaime também visita e ampara os leprosos de regiões vizinhas. Ele possui o amor que não termina, aquele feito de graça e misericórdia (“Só os pobres são generosos”, já ensinava o escritor católico francês Bernanos). D. Felícia Viana, Jaime Florentino de Souza, obrigado. Curvo-me respeitosamente ante a grandeza de suas vidas. Espalhemos rosas pela cidade à passagem destas criaturas de Deus.

(Publicada no jornal O MUNICÍPIO, de 13 de novembro de 1983)