O futebol é um fator de congregação
No ano do centenário dos meus avós, ver o Flamengo e o Botafogo em decisões me faz pensar no que o futebol representa para as famílias
O Globo – Por Marcelo Barreto
10/11/2024 03h30 Atualizado há 6 horas
Este é o ano do centenário de dois dos meus avós. A Vó Ciloca, mãe do meu pai, teria completado seus cem anos no dia 5 de novembro. Era rubro-negra, e foi se envolvendo ainda mais com o futebol em seus últimos anos de vida: sem poder se levantar da cama depois de fraturar o fêmur e enxergando mal, deixava a televisão do quarto ligada no SporTV o dia todo. Quando eu a visitava, me passava a lista atualizada das implicâncias que pegava com narradores e comentaristas (o neto, evidentemente, estava isento). O Vô Guilherme, pai da minha mãe, fazia aniversário junto com Pelé, em 23 de outubro. Era botafoguense, e mesmo quando o Mal de Parkinson limitou seus movimentos e a capacidade de se comunicar, a família o instalava em sua poltrona preferida, com os fones de ouvido que usava por causa da surdez, para ver os jogos do time.
Meus avós são de um tempo em que a relação com o futebol e com os times que escolheram era muito diferente. O Vô Guilherme gostava de contar histórias dos dirigentes do Flamengo, como Fadel Fadel, que conheceu em suas viagens ao Rio, para vender os produtos das pequenas fábricas que teve no interior de Minas ao longo da vida (uma delas, em Bicas, era de bolas de Natal; segurando uma na palma da mão e com lágrimas nos olhos verdes, ele me disse: “Marcelo, com isso aqui construí uma família” — foi uma das últimas frases que ouvi dele). Mas se apaixonou pelo Botafogo, antes ainda que o clube tivesse excelentes motivos para essa escolha, como seu companheiro de aniversário Garrincha, Didi, Nilton Santos…
A Vó Ciloca gostava de enfeitar a casa para jogos da seleção brasileira. De lá vêm minhas primeiras lembranças de uma Copa do Mundo, em 1974. Era o máximo que se esperava do envolvimento de uma mulher com o futebol nos anos 70, ainda mais numa cidadezinha de pouco mais de dez mil habitantes. Só não era o suficiente para ela, uma torcedora ativa (lembro de quando apoiou o samba de uma amiga na disputa de uma escola de samba biquense e passou dias repetindo a gravação: “Pindorama, Pindorama, pra brincar no carnaval o Areião todo se inflama” — nunca mais me esqueci do refrão, que canto enquanto escrevo). Toda essa energia foi canalizada para o Flamengo, quando, já viúva e morando num apartamento perto do nosso em Juiz de Fora, enfeitava a janela com uma bandeira do clube depois de cada conquista.
Ambos deixaram seguidores entusiasmados das paixões que escolheram. Uma parte da família, espalhada entre Ubá e Juiz de Fora, segue o Botafogo com a maior frequência possível no Nilton Santos (estavam lá no dia do centenário do Vô Guilherme, celebrando a goleada de 5 a 0 sobre o Peñarol) e comprou passagens para Buenos Aires. Outra estará reunida hoje para ver Atlético-MG x Flamengo, depois de um longo almoço como os que a gente tinha aos domingos na casa da Vó Ciloca. Os Guilhermino Barreto já estão na quarta geração de torcedores, e entre os agregados há também representantes de Fluminense e Vasco. O futebol sempre foi, para nós, fator de congregação, papo preferido das mesas de aniversário e Natal.
Quando chega essa época de decisões, qualquer que seja o time envolvido, penso nas famílias que vão curtir juntas os momentos de tensão e que, na vitória ou na derrota, guardar histórias para contar pelo resto da vida — e para as próximas gerações.