Marcelo Barreto: Na torcida pelo Brasil no Mundial de Futsal, minhas lembranças da bola pesada
O nome mudou, a bola e as regras também, mas para muita gente, como eu, é na quadra que se constrói a relação de amor com o futebol.
O nome completo era futebol de salão — para os íntimos, salão. A bola era pesada, não valia gol dentro da área e o goleiro não podia lançar com a mão, pelo alto, para o outro lado da quadra (ou atravessar, na linguagem do jogo). As quadras mais comuns e de mais fácil acesso eram de cimento. A do Esporte Clube Biquense, onde brincávamos na infância com bolas dente de leite, tinha placas quadradas separadas por pequenas valas. Ali deixávamos, ao errar uma bicuda, a capa de pele da parte de baixo do dedão e um rastrinho de sangue.
Na adolescência, já morando em Juiz de Fora, voltava a Bicas para as férias de julho e suas duas grandes atrações: a Exposição Agropecuária e o campeonato de salão do Esporte. A arquibancada tinha só três degraus e lotava depressa. Mas eu gostava mesmo de assistir aos jogos do muro da piscina, que ficava acima de uma das linhas de fundo. Foi dali que vi meu padrinho Newito, já de cabelos brancos, dar um chapéu no Wandinho da farmácia sem sair da marca do córner, só com um toquinho por baixo da bola. Em outro lance famoso, Mauro, dono do chute mais forte da cidade (diziam que treinava com bolas medicinais, aquelas cheias de areia), acertou a cabeça do goleiro Alemão, que bateu com a nuca na trave, desmaiou e foi parar no hospital.
Meu pai jogou e foi campeão, mas antes disso, quando eu ainda era criança (temos uma foto em preto e branco erguendo juntos um troféu). Na quadra, só participei uma vez, e fracassei. Acho que não fiz nenhum gol, nosso time foi eliminado na fase de grupos, mas consegui realizar um objetivo: passar óleo nas pernas para me proteger do frio. Achava que aquilo era uma espécie de credencial de jogador, porque só se fazia em campeonato.
O pouco que tive de carreira competitiva foi em Juiz de Fora, e começou por acaso: o Coruja (apelido), amigo do Castor (sobrenome), precisava de gente para completar uma pelada na Academia, colégio rival do nosso que tinha uma quadra de tábua corrida — a única da cidade; um luxo ainda maior do que as de taco, que já eram poucas. Algo como um tenista amador ser convidado para bater uma bolinha em Wimbledon. Juntamos o time da turma 3A do intercolegial no Jesuítas, onde estudávamos: eu, Castor, Carlinhos, os irmãos Mendes (Euler e Marcelo, nossos craques), o goleiro Marcus Vinicius. E nos saímos surpreendentemente bem.
O técnico da Academia nos viu e achou que seríamos um bom sparring para o time infanto-juvenil. Ganhamos um jogo-treino de 6 a 2. Aí vieram os reservas do juvenil, que tomaram de 6 a 0. E finalmente os adultos, que perderam de 5 a 4, com cinco gols do pivô que vos escreve. Os titulares do juvenil nós só enfrentamos num torneio, e empatamos em 3 a 3. Eles foram campeões, porque perdemos para o Granbery, mas meu maior troféu é a invencibilidade sobre o maior rival. E minhas atuações valeram um convite do técnico Adonise para um teste no Bom Pastor, que disputava o Mineiro do Interior. Fui reserva por uma temporada e fiz um gol, contra a Paraisense, na campanha do vice-campeonato.
Tudo isso é só para dizer que vou torcer muito pela seleção de futsal, hoje, nas quartas de final do Mundial. O nome mudou, a bola e as regras também, mas para muita gente, como eu, é na quadra que se constrói a relação de amor com o futebol.
Fonte: O Globo deste domingo, 26/09/2021