Criaturas de Deus
Perfis biquenses
Na década de 80, Chicre Farhat, escreveu várias crônicas para O MUNICÍPIO sobre personalidades biquenses, ressaltando nelas qualidades de caráter e de personalidade, muitas vezes despercebidos no dia a dia. Verdadeiras pérolas que, em novembro de 1983, foram reunidas em uma publicação lançada pelo prefeito Gilson Lamha. Posteriormente, Chicre continuou a usar sua brilhante mente para enaltecer outras personalidades. Assim sendo, em homenagem ao autor e aos seus personagens, tudo será republicado, a partir de agora.
Criaturas de Deus
Todo dia, às cinco da manhã, chova ou faça sol, uma extraordinária mulher sai de casa, quieta e humilde, para cumprir um dever que sua formação cristã lhe impôs: dar banho nos velhinhos do Asilo Paulo de Tarso. São mais de trinta. Indago à consciência desta cidade: há gesto maior de altruísmo, de pungente conteúdo humano?
Em momento de tanta mesquinharia, de desenfreada ambição, quando a goela dos agiotas e a maldade dos velhacos mais se arreganham, o “trabalho” de D. Felícia Viana é instante fraterno de paz, de inspiração divina. Onde d. Felícia foi encontrar tamanho desprendimento e ternura? O que a faz assim tão pura, tão amiga daqueles que o mundo largou (ou os parentes?) e amargam a cruel solidão.
E o que dizer de Jaime Florentino de Souza? Ele é o baluarte do Asilo, o coração que primeiro pulsa, o espírito encorajador, o grande comandante da mais comovente e justa batalha do homem: a luta em prol dos mansos e mais fracos, a solidariedade idealista ao decaído, o socorro certo na escura hora do aperto, a mão bem-aventurada, que acolhe, espalha bênçãos e faz renascer esperanças.
Eu bem me lembro dos mendigos e dos velhos esquecidos que dormiam na plataforma da Estação, maltrapilhos, doentes, acossados pelo frio, a fome, e pela nossa álgida indiferença. Onde eles estão agora? Por que não se os vê mais, um sequer, em nenhum canto de Bicas? Aqueles restos humanos que nos deprimiam e envergonhavam, que rumo tomaram? Não perguntem aos ricaços, aos graúdos, porque estes têm outros afazeres, não perdem tempo com bobagens que não dão lucro, nem aumentam o capital. E nem queiram saber o “valor” da contribuição deles para o Asilo… Perguntem, sim, a Jaime Florentino de Souza, este admirável cidadão, cuja trajetória é um hino de bondade, de calorosa presença. Um homem modesto, que só conheceu o trabalho, e tudo oferece aos nossos irmãos infelizes, que o egoísmo marginalizou e a cegueira feroz não foi capaz de distinguir em seu sofrimento e abandono.
Jaime também visita e ampara os leprosos de regiões vizinhas. Ele possui o amor que não termina, aquele feito de graça e misericórdia (“Só os pobres são generosos”, já ensinava o escritor católico francês Bernanos). D. Felícia Viana, Jaime Florentino de Souza, obrigado. Curvo-me respeitosamente ante a grandeza de suas vidas. Espalhemos rosas pela cidade à passagem destas criaturas de Deus.
(Publicada no jornal O MUNICÍPIO, de 13 de novembro de 1983)