Uma noite de carnaval

Eu adorava o carnaval biquense… Às vezes desaparecia pelas quebradas da soleira carnavalesca. Um dia minha irmã caprichou no meu visual, meu pai emprestou um pijama de flanela, Ana fez um gorro com pompom na ponta, mandou uma maquiagem arretada na minha cara e fui pra folia…

Quando cheguei no Brazinha e vi meus amigos mais emperiquitados que eu… Pensei: hoje a noite vai ser uma criança.

Tomamos aquela batida de “pesco”, que era exclusiva da casa, e depois que o trem subiu, saímos em direção à Sede do Sport, pois lá é que a coisa fervia…

Quando estávamos para entrar, teve uma revoada de confetes e serpentinas caindo lá daquela sacada onde o diabo tomava conta. Não sei como cabia tanta gente lá dentro.

As famílias tradicionais se ajeitavam pelas mesas, e o povão explodia no salão. A banda era de carne e osso, o repertório era selecionado com esmero, lança-perfume quase escancarada e muita paquera.

Era comum se colocar a mão no ombro de alguma foliã e ser descartado imediatamente só com o olhar, mas costumava colar também… Aí era a hora de tomar um arzinho lá na sacada…Bicas até quarta-feira!

Pulsando o coração

Depois de umas voltinhas na praça da Matriz, subimos, passamos no Elsinho, tomamos uma vitamina (num copo com dois canudinhos). Não era por medida de economia, mas sim romantismo. Comprei um “Sonho de Valsa” e ela o guardou.

Vimos alguns cartazes no cinema e voltamos para a praça…Sentamos e fizemos um monte de planos para o futuro. Já na hora de levá-la para casa, fomos abraçadinhos e com muita alegria. Chegamos discretamente ao portão e nos apertamos um no outro. Ela estava com aquele olhar de “te quero”, eu encostei minha boca em seu ouvido e recitei um trecho do “Soneto da Felicidade”: de tudo ao meu amor serei atento…

Senti o coração do broto pulsar e o corpo arrepiar. Ela tirou o bombom da blusa, desembrulhou e nós o comemos num longo beijo. Seu batom sujo de chocolate, foi uma desculpa para mais um beijo. Suas unhas quase cravadas nas minhas costas, foram provas do êxtase momentâneo…

Momentos depois escutamos um raspar de garganta atrás da janela, era a mãe do broto avisando da hora. Virei a esquina da rua XV, olhei para o céu, vi a lua escancarada que foi testemunha de um grande instante de amor… Bicas achocolatada.

Amor de mãe

Eu já estava morando fora e fui mais uma vez visitar minha família. Como sempre, levei umas lembrancinhas. Na hora do almoço, minha mãe disse que iria fazer uma comidinha que eu gostava. Minha irmã já havia buscado a linguiça lá no Lorin… Pude ver a caderneta marcada bem em cima da mesa.

O feijão já borbulhava no caldeirão de ferro e o alho para temperar o arroz já estava amassado… Dona Ana me mandou ir lá na horta e procurar na beirada da cerca uma coisa que ela guardou para mim. Era uma abobrinha menina que estava no ponto. Colhi e ela imediatamente preparou, do jeitinho que eu gosto: batidinha…

Ana Lúcia, minha irmã, com uma ponta de ciúme, disse: “fala pra ele que a compoteira esta com doce de figo e que a senhora não deixou ninguém comer até ele chegar”. Minha querida mãe brilhou os olhos e deu um leve sorriso. Foi o suficiente para ela ganhar um abraço e um beijão gostoso do seu filhão… Bicas maternal.

Mudança de hábito

Quando aquela mulher atravessou a ponte com uma sombrinha colorida, de salto alto e batom bem forte nos lábios, despertou olhares maldosos das bruacas brejenses. Seu destino era a casa de sua amiga Bebete…

Com muita elegância, ela foi galgando os degraus olhando para aquelas palmeiras lindas no quintal acima. Bebete já estava esperando no topo da escada, quando se encontraram, trocaram beijos e abraços sinceros.

Entraram e foram para a copa, onde uma mesa farta esperava para o café… Na esquina da Rua do Brejo, meio que discretas, as três bruacas teciam comentários.

Hilda: “Essa gente que vem de fora usa umas coisas esquisitas que deixa a gente chocada.”

D. Anita: “Cruz credo, sombrinha colorida e batom de mulher da vida em plena luz do dia.”

Durica: “Tá na cara que aquela mulher não presta… Imagina usar calça comprida… isso é coisa de piranha.”

Mais tarde, a amiga se despediu de Bebete e um carro de praça a esperava no portão com o chofer Vicente ao volante. Mais dor de cotovelo gerou na esquina da minha rua… Bicas nas modas.

Doando amor e sabedoria

Deixou-nos nessa madrugada, Dona Maria do Gregório, como era conhecida por todos nós lá da Rua do Brejo. Uma mulher nascida na mais dura realidade que a vida nos pode dar…

Criou uma filharada na quase extrema pobreza e, nem por isso, deixou de amar a vida e indicar o caminho do bem para todos aqueles que quisessem seguir. Se sentia bem e estava sempre pronta quando aparecia alguma criança em sua casa para ser benzida (eu fui “cliente” dela).

Era uma maneira dela distribuir sua sabedoria e carinho… Dona Maria é certeza absoluta que para onde estiver indo, as portas do bem estarão te esperando bem abertas, apenas cumprindo o protocolo pela sua bela passagem por aqui. Nós desculpamos a dor deixada nos nossos corações… Bicas em lágrimas!

Esfriando no caixão

Cidadão ia andando pela rua e do nada colocou a mão no coração ululando. Foi parar no hospital já sem vida. Tentou se comunicar, porém, não teve resultado…Assim, só ouvia e via o que estava em sua volta. A enfermeira que estava preparando seu corpo para o velório disse para a outra: “Agora, eu sei porque a viúva andava sempre alegrinha, era bem servida noturnamente”. A outra, balançou a cabeça e completou: “Quem me dera uma coisa dessas lá em casa”…

O defunto foi encaminhado para a funerária e não gostou do traslado, sem nenhum cuidado, foi jogado dentro do caixão… Durante o velório, ele se ria por dentro, pois viu o quanto a vida nos surpreende, até estando do outro lado.

Aquele sujeito, que lhe devia uma grana, chegou com um olhar lamentoso, colocou a mão nele, balançou a cabeça e sussurrou artisticamente: “Que injustiça, você não poderia ter ido agora”.

O sobrinho chorava, copiosamente. Este, o cadáver viu sinceridade, mas o amigo de todas as horas foi a decepção… Já havia cumprimentado a viúva várias vezes com abraços apertadíssimos. Teve momento que o defunto queria se levantar do caixão, via por baixo das lágrimas dela que havia um certo suspiro pelo consolo.

Quando, finalmente, o morto foi encaminhado para o cemitério, ele pensou: “Tenho que negociar agora com os outros vermes que vão acabar de me devorar”.