O médico de família

Dr. Milton 

Toda vez que ele aparecia na Rua do Brejo, despertava a curiosidade de todos. A criançada corria para perto dele para observar a maleta na mão e um instrumento pendurado no pescoço.

Dr. Milton de Oliveira Souza era um personagem que a turma daquela época guarda na lembrança como uma pessoa que ajudava a todos. Um médico que tratava dos pacientes com muita atenção, dentro e fora do seu consultório…

Um dia ele chegou com muita pressa e nós o acompanhamos pela rua… Ele brincando, colocou o estetoscópio no ombro do Paulo e disse que era para dar sorte, pois ia atender a sua avó que não estava bem.

Chegando na casa, pediu para ficarmos esperando ali fora, que logo voltaria. Ficamos por ali, aguardando, porque ele sempre conversava conosco e mostrava aquela maleta, que era o objeto de nossa curiosidade.

Mas, dessa vez, não deu certo… Dr. Milton saiu apressado atrás de socorro… Nós ficamos apreensivos porque o caso era grave. Ele sempre foi atencioso e cordato, atendia também no seu consultório, mas o que ele gostava mesmo, era de tomar um cafezinho nas casas dos clientes…. Bicas saudável.

Em um entardecer

Quando minha mãe dizia: “Vamos sentar lá no Grupo”… era a senha para encontrar com as outras crianças e dar cambalhotas de alegria. A mureta que cercava o gramado da escola era na verdade um banco imenso, tinha uns cinquenta metros de extensão e uma altura certa para se acomodar sentado, mas o que me dava contentamento era a certeza de comprar o picolé do Pedro Machado.

Minha mãe sempre levava um dinheirinho para isso. Enquanto ela conversava com as amigas, eu já estava na fila do picolé. O comércio do Pedro Machado era uma mistura de sorveteria e bar. Um bom atendimento, tanto ele, como sua esposa Aparecida faziam questão de que todos saíssem de lá com um sorriso.

Guloseimas como Drops Ducora, Chiclete Ping Pong, vários tipos de salgadinhos e outros quitutes. Mas nós, as crianças, estávamos de olho no principal: o picolé! O meu favorito era de creme. Havia vários outros sabores: amendoim torradinho, chocolate e o de coco então… Cheio de pedacinhos que mastigávamos no final.

Entre um picolé e outro, brincávamos de pique na grama do grupo, íamos até a pracinha dos aposentados, subíamos na grade do hospital; enfim, deitávamos e rolávamos…..Bicas criança!

Touro à unha

Dona Diola estava terminando de varrer a calçada, bem na esquina de sua casa. Sapim vinha montado na sua mula Castanhola, guiando uma vaca que havia escapado lá da fazenda do Dim Mota. Era uma tarde de verão com céu azul. O vaqueiro, com seu chapéu à la John Wayne, estava em mais uma tarefa de rotina…

Quando a vaca ia indo em direção ao Ginásio, a danada encorporou o “coisa ruim” e desembestou passando por cima de tudo que estava em sua frente… Tirou uma fina no Liberalino que o deixou da cor de caulim. Sapim, meteu as esporas na Castanhola e encurralou a vaca naquela rua do lado direito, que terminava na cerca da matinha…

No corre-corre, Zé Alicate, que tava tomando uma “limpa goela” no botequim por ali, botou a cara pra fora e viu quando a vaca investiu sobre a Castanhola e a derrubou, indo o vaqueiro, desequilibrado, parar com a cara num mourão de braúna…

Ninguém chegava perto do animal; porém, Zé Alicate, nosso velho toureiro, não se intimidou… Pediu mais uma cachaça e foi lá se ater com a fera. A rua, já lotada de espectadores, parou em silêncio. Zé tirou a camisa e a abanou na frente da vaca que partiu pro ataque. Ele, com sua destreza de “Manolete”, pulou entre seus chifres e, num bote só, jogou a “possuída” no chão.

Logo os valentões chegaram para ajudar. Amarraram a vaca e a caminhonete do Dim Mota foi solicitada… Sapim, com a calça rasgada, o beiço rachado e sangrando, subiu na Castanhola com dificuldades, e um moleque lhe entregou o chapéu todo amassado.

Dona Diola perguntou pro Zé Alicate se ele não teve medo… Zé, respeitosamente, bateu a poeira da roupa, limpou as mãos e respondeu: “Estou acostumado a pegar touro a unha… Com ela foi só um treino”… E saiu solerte… Bicas nervosa.

Uma noite de carnaval

Eu adorava o carnaval biquense… Às vezes desaparecia pelas quebradas da soleira carnavalesca. Um dia minha irmã caprichou no meu visual, meu pai emprestou um pijama de flanela, Ana fez um gorro com pompom na ponta, mandou uma maquiagem arretada na minha cara e fui pra folia…

Quando cheguei no Brazinha e vi meus amigos mais emperiquitados que eu… Pensei: hoje a noite vai ser uma criança.

Tomamos aquela batida de “pesco”, que era exclusiva da casa, e depois que o trem subiu, saímos em direção à Sede do Sport, pois lá é que a coisa fervia…

Quando estávamos para entrar, teve uma revoada de confetes e serpentinas caindo lá daquela sacada onde o diabo tomava conta. Não sei como cabia tanta gente lá dentro.

As famílias tradicionais se ajeitavam pelas mesas, e o povão explodia no salão. A banda era de carne e osso, o repertório era selecionado com esmero, lança-perfume quase escancarada e muita paquera.

Era comum se colocar a mão no ombro de alguma foliã e ser descartado imediatamente só com o olhar, mas costumava colar também… Aí era a hora de tomar um arzinho lá na sacada…Bicas até quarta-feira!

Pulsando o coração

Depois de umas voltinhas na praça da Matriz, subimos, passamos no Elsinho, tomamos uma vitamina (num copo com dois canudinhos). Não era por medida de economia, mas sim romantismo. Comprei um “Sonho de Valsa” e ela o guardou.

Vimos alguns cartazes no cinema e voltamos para a praça…Sentamos e fizemos um monte de planos para o futuro. Já na hora de levá-la para casa, fomos abraçadinhos e com muita alegria. Chegamos discretamente ao portão e nos apertamos um no outro. Ela estava com aquele olhar de “te quero”, eu encostei minha boca em seu ouvido e recitei um trecho do “Soneto da Felicidade”: de tudo ao meu amor serei atento…

Senti o coração do broto pulsar e o corpo arrepiar. Ela tirou o bombom da blusa, desembrulhou e nós o comemos num longo beijo. Seu batom sujo de chocolate, foi uma desculpa para mais um beijo. Suas unhas quase cravadas nas minhas costas, foram provas do êxtase momentâneo…

Momentos depois escutamos um raspar de garganta atrás da janela, era a mãe do broto avisando da hora. Virei a esquina da rua XV, olhei para o céu, vi a lua escancarada que foi testemunha de um grande instante de amor… Bicas achocolatada.

Amor de mãe

Eu já estava morando fora e fui mais uma vez visitar minha família. Como sempre, levei umas lembrancinhas. Na hora do almoço, minha mãe disse que iria fazer uma comidinha que eu gostava. Minha irmã já havia buscado a linguiça lá no Lorin… Pude ver a caderneta marcada bem em cima da mesa.

O feijão já borbulhava no caldeirão de ferro e o alho para temperar o arroz já estava amassado… Dona Ana me mandou ir lá na horta e procurar na beirada da cerca uma coisa que ela guardou para mim. Era uma abobrinha menina que estava no ponto. Colhi e ela imediatamente preparou, do jeitinho que eu gosto: batidinha…

Ana Lúcia, minha irmã, com uma ponta de ciúme, disse: “fala pra ele que a compoteira esta com doce de figo e que a senhora não deixou ninguém comer até ele chegar”. Minha querida mãe brilhou os olhos e deu um leve sorriso. Foi o suficiente para ela ganhar um abraço e um beijão gostoso do seu filhão… Bicas maternal.

Mudança de hábito

Quando aquela mulher atravessou a ponte com uma sombrinha colorida, de salto alto e batom bem forte nos lábios, despertou olhares maldosos das bruacas brejenses. Seu destino era a casa de sua amiga Bebete…

Com muita elegância, ela foi galgando os degraus olhando para aquelas palmeiras lindas no quintal acima. Bebete já estava esperando no topo da escada, quando se encontraram, trocaram beijos e abraços sinceros.

Entraram e foram para a copa, onde uma mesa farta esperava para o café… Na esquina da Rua do Brejo, meio que discretas, as três bruacas teciam comentários.

Hilda: “Essa gente que vem de fora usa umas coisas esquisitas que deixa a gente chocada.”

D. Anita: “Cruz credo, sombrinha colorida e batom de mulher da vida em plena luz do dia.”

Durica: “Tá na cara que aquela mulher não presta… Imagina usar calça comprida… isso é coisa de piranha.”

Mais tarde, a amiga se despediu de Bebete e um carro de praça a esperava no portão com o chofer Vicente ao volante. Mais dor de cotovelo gerou na esquina da minha rua… Bicas nas modas.

Doando amor e sabedoria

Deixou-nos nessa madrugada, Dona Maria do Gregório, como era conhecida por todos nós lá da Rua do Brejo. Uma mulher nascida na mais dura realidade que a vida nos pode dar…

Criou uma filharada na quase extrema pobreza e, nem por isso, deixou de amar a vida e indicar o caminho do bem para todos aqueles que quisessem seguir. Se sentia bem e estava sempre pronta quando aparecia alguma criança em sua casa para ser benzida (eu fui “cliente” dela).

Era uma maneira dela distribuir sua sabedoria e carinho… Dona Maria é certeza absoluta que para onde estiver indo, as portas do bem estarão te esperando bem abertas, apenas cumprindo o protocolo pela sua bela passagem por aqui. Nós desculpamos a dor deixada nos nossos corações… Bicas em lágrimas!

Esfriando no caixão

Cidadão ia andando pela rua e do nada colocou a mão no coração ululando. Foi parar no hospital já sem vida. Tentou se comunicar, porém, não teve resultado…Assim, só ouvia e via o que estava em sua volta. A enfermeira que estava preparando seu corpo para o velório disse para a outra: “Agora, eu sei porque a viúva andava sempre alegrinha, era bem servida noturnamente”. A outra, balançou a cabeça e completou: “Quem me dera uma coisa dessas lá em casa”…

O defunto foi encaminhado para a funerária e não gostou do traslado, sem nenhum cuidado, foi jogado dentro do caixão… Durante o velório, ele se ria por dentro, pois viu o quanto a vida nos surpreende, até estando do outro lado.

Aquele sujeito, que lhe devia uma grana, chegou com um olhar lamentoso, colocou a mão nele, balançou a cabeça e sussurrou artisticamente: “Que injustiça, você não poderia ter ido agora”.

O sobrinho chorava, copiosamente. Este, o cadáver viu sinceridade, mas o amigo de todas as horas foi a decepção… Já havia cumprimentado a viúva várias vezes com abraços apertadíssimos. Teve momento que o defunto queria se levantar do caixão, via por baixo das lágrimas dela que havia um certo suspiro pelo consolo.

Quando, finalmente, o morto foi encaminhado para o cemitério, ele pensou: “Tenho que negociar agora com os outros vermes que vão acabar de me devorar”.

Numa tarde de domingo

Zé Quinhentos apita o início do prélio. Estádio Almir Maciel com um ótimo público, atento para mais um clássico intermunicipal. Lá na arquibancada de concreto, Santos estava faturando com seus picolés, não precisava nem gritar, pois a torcida estava debaixo de um sol daqueles…

No lado da arquibancada de madeira, perto do banco de reservas, Coelhinho vendia suas peles e amendoins. Esse gritava para deleite dos torcedores: “Temos lábios de porco torrados que levanta defunto”… Nas quatro linhas, Roberto Pequeri deu um lençol no Teminho, tirou Tonico da jogada, com uma finta, e tocou no canto direito do Quinista: Pequeri 1×0.

Antônio Bento, faturando com suas laranjas atrás do gol, gritava para o Leopoldina reagir… Tempo passando, todos apreensivos e nada. Lelé, que entrou no segundo tempo, recebeu um belo passe do Pio, na entrada da área, e fuzilou o arqueiro Paulinho, empatando o jogo.

Na comemoração, Niquinha, que estava encostado no alambrado e rasgado d`água, jogou uma mamucha, acertando em cheio a cabeça do bandeirinha. Balanga largou a mala de massagista e correu para abraçar o técnico Wilson Amorim, que esfregava as mãos com um sorriso largo. Assim, o clássico terminou empatado e mostrou ser um grande entretenimento… Bicas com a bola cheia.