Passando por aqui

Hoje, dia 07 de janeiro de 2021,  José Luiz Bertelli nos deixou. Fomos contemporâneos de uma Bicas que não existe mais, onde o coleguismo e amizade faziam parte de todas as turmas que se formavam nos quatro cantos da terrinha.

Eu e ele fazíamos parte daquele grupo que sempre conto algo por aqui: o pessoal jovem lá do “Brazinha”… Tomávamos nossos drinques, contávamos lorotas, paquerávamos os mesmos brotinhos e, às vezes, repartíamos as roupas de sair para variar o nosso pobre guarda roupa.

Aquelas calças bocas de sino eram medidas para ver qual tinha a boca maior, e o sapato Cavalo de Aço então?… Nos bailes, apesar dos salões cheios, nunca nos perdíamos de vistas. Quando passava um brotinho dez, ele dizia: “Ô trenhão”.

Na Tia Rita também nossa turma ficava de antena ligada, por conta do ambiente… Hoje a covid o levou. Mesmo sem vê-lo, há anos, senti sua perda e me lembrei das nossas aventuras juvenis numa época que podíamos nos abraçar e encher a boca dizendo: “Esse é meu amigo”.

Todas as tormentas e distância que qualquer amizade passa, nunca é maior que sua representatividade. Esteja em paz Meu amigo Zé Luiz… Bicas fraterna.

O inovador

Existem situações que às vezes estão debaixo dos nossos narizes e não percebemos. Aqueles privilegiados que enxergam o futuro nos seus negócios, fatalmente tiram proveito e emergem como empreendedores.

Temos um monte de casos assim… Na terrinha, nos anos 60, foi inaugurada a Casa Petite, uma loja com todo o arrojo, que quebrou as regras na forma de atendimento, produtos, vitrines, iluminação e crédito.

Por conta disso, virou uma febre para os que queriam andar na moda e tirar onda. Me lembro que fiquei na fila de espera para comprar a minha primeira calça Lee. Foram dias de angústia até que, finalmente, pude vestir aquele sonho de consumo do momento…

Recentemente, Tanide, o dono daquela loja nos deixou, e deixou também sua loja, que desde 1967 faz parte do comércio biquense e ajudou-nos a andar na moda. Certamente, Tanide deve tá dando um jeito nas roupas dos anjos no espaço sideral. Seu faro empreendedor deve tá revolucionando o céu… Bicas na moda.

A leveza do ser

Há três anos tive o privilégio de tomar café na casa de um homem que ajudou muito na minha formação e de vários outros jovens biquenses. Por motivos que só a vida explica, nosso reencontro aconteceu quase meio século depois.

Sr. Vicente Rossi estava beirando os cem anos, mas sua cabeça continuava a mesma de sempre. Fiz aquela velha pergunta para ele: “Qual o segredo de sua longevidade?”

Ele rindo me mostrou uma garrafa de uísque bem no jeito perto da prateleira. Tomava sempre uma dose para lustrar a alma. Contou-me histórias de sua trajetória, dizendo que o verdadeiro segredo para se viver bem é fazer o bem. Tratar todos com igualdade, ter fé em Deus e se puder tomar um uisquinho de vez em quando.

Nessa madrugada, Vicente Rossi nos deixou, mas deixou a lição de que viver sempre vale a pena. Claro que estamos tristes, mas a alma desse homem comum deixará um rastro de bondade e valor à vida… Bicas enlutada.

A quilha e a onda

Não era hora marcada, coincidência ou não sempre que ele sentia saudade, se acomodava naquela cadeira posicionada estrategicamente entre as samambaias dependuradas na parede e o vaso de lírio branco que enfeitavam a varanda de sua casa ali na Barão de Catas Altas.

Aquele homem grisalho e com sinais da idade no rosto, mais uma vez puxou a mesinha para apoiar seu copo de bebida. Esse ritual já fazia parte do enredo que talvez tenha se tornado um dos poucos momentos importantes de seus sonhos.

Ela às vezes passava pela calçada só; outras, vinha abraçada com seu amor. Discreto entre as flores, assim que seus olhos a alcançava, o coração batia mais forte e ele remoía aquela paixão que um dia cortou o mar de sua solidão e, como o cheiro fugaz de um perfume barato, se foi.

A cadeira balançava seu corpo como se estivesse num barco ao mar. A volta aos dias vividos com ela, descia forte pela sua garganta, misturando a bebida com o gosto empoeirado da paixão.

Não importava mais capitular aquele caso, pois ele há anos fazia parte de uma história. O tempo foi cruel com ele, mas com ela não. Seu andar firme e olhos brilhantes, mostravam que a felicidade mudou de endereço, permanecendo viçosa.

A vida dela também cortou tormentas, mas parou numa praia plácida com areias brancas que descansavam nas rochas. Quando ela sumiu de sua vista, o uísque já havia fugido do copo, deixando apenas as pedras de gelo. A cadeira continuava balançando sozinha e ele com seu olhar fosco caminhou pelo corredor titubeando como uma onda.

Galinha pintadinha

Rolava na maior tranquilidade nossa peladinha rotineira no campinho na Rua do Brejo. De repente, Dona Ivone saiu da sua casa com uma galinha carijó debaixo do braço e um ovo na mão. Parou em frente a casa da vizinha e começou a xingar.

Sissi apareceu na janela e o bate boca engrossou e aumentou de volume… Dona Ivone furiosa, reclamou: “Sua galinha botou um ovo em cima da minha penteadeira que acabei de comprar, também chiscou arranhando o verniz e quase quebrou o espelho de tanto dar bicadas”.

E continuou: “Da próxima vez que a galinha aparecer por lá, vai direto para a panela”…

Sissi rebateu: “Minha galinha não tem nada com isso, você quer é fazer propaganda daquela coisa horrorosa que tá lá na sua casa, pois ninguém deu bola para aquele boco moco que você comprou”.

Dona Ivone espumando pespegou: “Boco moco é o seu marido que não serve pra nada”.

Sissi não deixou barato: “Uai! não sabia que você tinha testado ele. Aqui em casa ele funciona muito bem, mas é enjoado e não gosta de qualquer buraco” …

Nisso, a galinha carijó escapou. Dona Ivone possessa atirou o ovo em direção a Sissi explodindo na janela com aquela gema amarelinha escorrendo. Sissi se recolheu. Dona Ivone voltou para casa pisando duro, e nós reiniciamos a nossa pelada… Bicas barraqueira.

Na chuva, na rua, na terrinha…

Minha mãe me gritou para ajudá-la a recolher as roupas do varal, pois vinha vindo um temporal. Dito e feito! O tempo fechou e logo começou a relampejar. Mas como toda chuva de verão… passou logo. Eu já estava retirando e dobrando algumas folhas de um caderno velho e fazendo barquinhos de papéis.

Assim que a chuva abrandou, sai de fininho e fui lá na esquina da Dona Ciloca fazer “represa” junto com a molecada. A água da chuva descia a Necésio Silva pelos cantos, que era contida com o barro da própria rua. Nesse momento, nós já estávamos lambuzados da cabeça aos pés.

Rapidinho, eu, Veio, Nelsinho e Revalino construímos a barragem para brincar, que em pouco tempo se tornava um lago, enquanto ia chegando mais moleques. Em seguida, entrava em ação os barquinhos de papel que concorriam com algumas pequenas bacias de alumínio.

Todos navegando naquele lago. Outras crianças também iam construindo represas em outros pontos, fazendo da chuva um grande divertimento. Os coroas ficavam nas janelas morrendo de inveja e mães desesperadas com a sujeira de nossas roupas.

Quando a enxurrada acabava, e o volume d’água diminuía, era hora de desmanchar as represas e fazer a esperada guerra da lama. O barro era democrático e não se salvava ninguém… Alguns mais e outros menos.

Depois disso, era a hora de enfrentar a cara feia em casa. Dona Ana, dizia: “vai direto pro tanque”. Eu pegava o balde cheio de água e tirava o grosso, só depois entrava para o banho. Mesmo assim, ficava alguma marca atrás da orelha… Bicas era demais!