Dia de fúria

A nata da molecada estava brincando na esquina da Cooperativa. Uns jogavam pião, outros, bolinhas de gude, entre aquela movimentação enorme que era rotina todos os dias na Rua do Brejo. Sr. Alberto Moleque vinha com sua caixa de ferramentas no ombro, levou um safanão do Valdir do Cesário, que passou correndo e o jogou ao chão com tudo.

Valdir, nervoso, quando nos viu no seu caminho gritou: sai da frente molecada… Se a Chica me pegar, ela acaba comigo… Enquanto nós acudíamos e ajudávamos a recolher as ferramentas, Francisca, com um cabo de vassouras na mão, esbravejava: “Volta aqui seu vagabundo, que vou te dar um chá de coragem para arranjar um serviço.”

Paulo de Melo e Zédonfre, que eram maquinistas e estavam voltando de viagem, riram de cima da ponte, mais uma vez da mesma cena de sempre… Nesse momento, Revalino teve a infeliz ideia de soltar uma “cabeça de nego” no depósito de lenhas da Cooperativa. Sr. Eurico estava descarregando o leite de sua carroça, na plataforma, e sentiu quando o cavalo assustou com o estrondo…

Pulos, coices, relinchos marcaram o descontrole do animal. Natalino tentou segurar as rédeas e foi pro chão. Vanor gritou: “Saiam da frente que o bicho tá com o diabo no corpo.”

A carroça saiu de ré, bateu no caminhão do Manezinho, arrancou a cerca de arame e foi parar dentro do córrego. Sr. Ismael, com sua calma de sempre, tirou os tamancos dos pés, foi lá e acalmou o cavalo…

Nisso já rolava uma pelada no campinho. Foi quando Dona Guiomar passava com seu balaio cheio de quitutes para abastecer seu barzinho lá na Estação, e Bebete procurava mais um dos seus gatos, perdido ou talvez comido… Bicas fervendo.

Os três apitos

Durante todo o tempo que passei em Bicas, o que mais me chamava a atenção era a influência que a Leopoldina exercia sobre todos nós. Fosse como geradora de empregos ou pelo espaço físico que ela ocupava. Haja vista sua marca registrada: seus apitos que ecoavam por todos os cantos.

Seis e meia da manhã soava aquele que era o mais longo dos apitos matinais. Demorava propositadamente para acordar mesmo toda a cidade… Havia aquele corre-corre, pois sabíamos que quinze minutos depois viria outro mais breve, que queria dizer: tomou café?

Sempre encontrávamos pessoas correndo para o trabalho ou escola perguntando se o segundo apito já havia ocorrido. O terceiro e último da manhã, era mais longo que o do meio, ou seja,  intermediário, indicando que deveríamos estar a postos.

Nessa meia hora, os três apitos da parte da manhã faziam Bicas ficar elétrica e nos obrigavam a um enquadramento…No meio do dia, a história se repetia para o almoço, descanso e volta ao trabalho ou escola.

Mais tarde, às quatro e meia, o último dos apitos encerrando as atividades. Quase todos os estabelecimentos comerciais obedeciam essa marcação. A dependência da população era rotineira e automática, se por algum motivo os apitos da Leopoldina não funcionassem, nós ficávamos iguais a barata tonta…

Outra prova marcante da Rede Ferroviária nas nossas vidas, era a quantidade de comboios que passavam diariamente pela Estação; no mínimo uns cinco, fomentando um comércio de fazer inveja às cidades vizinhas.

A Leopoldina, que chegou a gerar quase mil empregos diretos, também nós deu duas ótimas escolas, uma renda per capta e padrão de vida de fazer inveja à região. Foi terrível para todos o fim das atividades dela sem deixar nenhuma opção no lugar. Isso causou um enorme êxodo e estagnação… Bicas sempre nos trilhos.

Cine Theatro São José

Ir ao cinema nos finais de semana era um programa obrigatório para quem podia e gostava desse entretenimento. Os filmes, geralmente eram escolhidos a dedo para satisfazer ao maior público possível. Faroeste, guerra, comédia, suspense ou romântico. Essa fórmula era infalível, os filmes menos conhecidos, reprises ou as famosas “bombas”, ficavam para a exibição no meio da semana, que os estudantes adoravam quando matavam aulas…

Assim, nossa principal diversão criou hábitos e fregueses fiéis. Adão, por exemplo, não só era espectador assíduo, como também gostava de ser o primeiro da fila, chegando bem antes que começar a sessão. Era comum alguém ficar na fila para entrar, guardando o lugar, enquanto o acompanhante ia para a fila da pipoca lá no carrinho do Sr. Jair Cotta, que fazia das tripas o coração para dar conta da demanda.

Conta a lenda que Chico Retto pediu ao pipoqueiro para furar os saquinhos de pipocas, pois assim que as luzes se apagavam, começava um festival de estouros dentro do cinema… Eu como outros jovens da época, falsificávamos a data de nascimento nas carteirinhas estudantis para entrar nos filmes proibidos para menores. Havia até comissários na portaria para verificar os documentos. Muitas vezes Ari Marocco, o bilheteiro, nos avisava que era melhor esperar o filme começar para não sermos barrados, é bom lembrar que estávamos em plena ditadura.

Ao passar pela portaria, nós também tínhamos a opção de compra dos amendoins, doces e salgados embalados naqueles cartuchos práticos que eram uma gostosura. As três badaladas, a música, o apagar das luzes e a abertura da cortina, formavam um ambiente de expectativas, que na verdade era a preparação para entrarmos num mundo de ilusão expondo nossas emoções.

Quando o mocinho beijava a mocinha lá no filme, a cena se repetia em várias poltronas, muitas vezes com o clarão da tela era possível ver os ósculos dos casais pegos de surpresa… A magia do espetáculo formava uma atmosfera lúdica, que quando terminava a sessão, era comum ver lágrimas e sorrisos escancarados.

Dependendo do enredo, também, a não concordância com determinados desfechos dos filmes, principalmente quando o mocinho morria, o que era raro. nossa Bicas pôde se orgulhar por muitos anos ter um cinema que era um dos melhores da região, tanto na escolhas das fitas, como também na organização dos eventos. Lógico que havia os contratempos: filme que não chegava na hora, fitas muito usadas e outras encrencas que faziam parte da rotina, mas todos que viveram aquele momento jamais esquecerão o quão emocionante era assistir um filme no cine São José… Corta Gote!!!

O circo chegou

Na véspera da estreia era um espetáculo à parte. Todos os artistas e animais desfilavam pelas ruas centrais de Bicas… Na frente o palhaço com as pernas de pau e um megafone ia dizendo: Hoje tem marmelada!!? A criançada repetia: tem sim senhor! Hoje tem goiabada!!? Tem sim senhor… A comitiva passava com todo o elenco circense: mágicos, contorcionistas, a mulher que soltava fogo pela boca e os animais, a principal atração da criançada. Leões, zebras e elefantes, entre outros. Era uma maneira de fazer propaganda muito bem feita. Geralmente o circo ficava armado no Bairro Santana por um bom tempo e sempre lotado. Nossa turma ia lá durante o dia para curtir todo aquele visual lúdico… Quando começava o espetáculo, no picadeiro como sempre, Palhaços, Globo da Morte, Contorcionistas, Mágicos e o Teatro Dramático no final do espetáculo, momento onde muita gente saia chorando. Na verdade, era uma explosão de emoções, do riso ao choro, para lavar a alma. E o palhaço o que é? Ladrão de mulher!!!! … Como era divertida nossa Bicas…