Num Domingo qualquer

Quando minha mãe ia fazer frango no almoço, já se sabia logo: caldeirão cheio de água pra ferver no fogão a lenha… Meu pai me mandava ir lá no armazém do Sr. Armando comprar queijo ralado e macarrão Santa Isabel, aquele que vinha numa embalagem roliça de papel.

O queijo era ralado na hora numa máquina manual que ficava fixa na beira de uma mesa. Na volta, em troca do serviço, avisava que a moela era minha, mas Ana Lúcia sempre me filava um pedaço. Os outros irmãos não ligavam…

Enquanto a água fervia, minha mãe já estava com o ciscante no ponto de sacrifício. Logo ela pisava nas asas e nos pés do galarote imobilizando-o. Colocava um prato de esmalte com algumas gotas de limão debaixo do pescoço já depenado do coitado e a faca mais afiada que língua de trapo fazia o sangue jorrar…

O limão era para o sangue não coalhar depois de exaurido. Assim, com a água já no ponto, começava o trabalho de limpeza e esquartejamento, para levar o galináceo à panela de ferro.

Em poucos minutos, espalhava pela casa aquele cheirinho do tempero da Dona Ana. O macarrão era quebrado antes de cozer, para facilitar a degustação. Na hora do almoço, o peito ficava sempre para o meu pai que podia troca-lo.

Havia um revezamento: quem comia a coxa num domingo, no próximo ficaria com o pescoço e os pés e assim por diante. Além da macarronada com frango, havia também algum complemento.

Antônio, meu irmão do meio, gostava de frango com macarrão, feijão e quiabo. Tinha para nós todos Q-suco, com gelo da geladeira da Ivone. Eu ria ao ver no espelho minha língua roxa da uva artificial.

No final do almoço, aquela forquilha de osso do peito ia para a chapa do fogão e quando ficava seca, eu a Ana Lúcia fazíamos a disputa puxando as pontas para ver quem ficava com o pedaço maior… Bicas self service.

Cinquenta anos “Normal”

Hoje me deparei com um vídeo que me remeteu aos meus quinze anos. Não tive a oportunidade de estudar no Francisco Peres, e muito menos fiz o “Normal’, aquele curso que formava as nossas professoras. Aliás, com um padrão bem alto… Todas que passaram por lá saiam afiadíssimas para enfrentar a profissão…

Foi uma festa de confraternização das ex-colegas comemorando os 50 anos de formatura. Quase todas compareceram, umas vindo de longe. Vendo o vídeo me deparei com algumas professoras que me ajudaram em Bicas, outras não me lembrava e pedi ajuda a uma amiga… Sempre fui saudosista, não nego, fiquei emocionado com a imagem do prédio da escola e dos professores das formandas.

Mas, o que mais achei legal foi a alegria das alunas de outrora matando a saudade num encontro que durou perto de oito horas. Devem ter saído de lá roucas. Parabéns a todas as professoras que tiveram papel importante na instrução de várias gerações biquenses e em outras cidades também… Bicas normalizando. 

(Veja o vídeo na Coluna do Zé Arnaldo desta quinta-feira, dia 25)

Blitz na Zona

O juiz-xerife Dr. Amilar chegou botando pra quebrar. Criou comissariado do menor e exigiu mais rigor na portaria do cinema com relação a idade nos filmes censurados… Aliás, quase todos. E botou a turma pra trabalhar… Nossa turma gostava de visitar com uma certa frequência as meninas da tia Rita. Dessa vez, subimos a parte alta, descemos aquela escadinha ali perto do leilão e chegamos discretamente no epicentro do pecado.

Havia uma máquina de tocar músicas que era uma novidade. Bastava comprar a ficha no balcão e escolher a canção… Picolé colocou um bolero do Nelson Gonçalves e estava dançando de rostinho colado e tudo. Aquela luz roxa, a fumaça dos cigarros e muita conversa no balcão formava aquele clima típico do ambiente… De repente, Biriba entrou assustado dizendo que os “ome” cercaram todas as entradas e estavam armados.

Eu, Veio e Nelsinho, por sermos “de menor”, não pensamos duas vezes, pulamos a janela dos fundos da casa da Gaúcha e nos escondemos naquele bananal, lá no buraco, ficamos quietos e assistindo o que se passava por ali.

Maninho saiu correndo com as calças na mão, mostrando o bundão branquelo e, ao passar debaixo do poste, sumiu lá pro pasto.

Derly Arruda já com a cara cheia queria estrilar, mas Chiquinho o acalmou… Os “ome” não encontraram nada de irregular, cumpriram suas tarefas, tomaram umas cervejas e foram embora.

Mais tarde, na descida, nos encontramos e o Veio, muito sacana, disse pro Maninho: “Você deveria botar suas nádegas no sol, pois elas parecem bunda de doente”… Bicas peladona.

O almirante

Numa prateleira que ficava bem visível na loja “Casa do Compadre”, todos viam expostas as caixas de sapatos com um produto que se confundia com a marca… De couro legítimo e costurado à mão, os calçados confeccionados naquela fábrica, que ficava ali perto da igreja Matriz, sem dúvidas, eram motivos de orgulho para nossa cidade… Os irmãos Curzio, por um bom tempo, estiveram na linha de frente de uma empresa que gerava emprego e renda, além de ter um produto famoso até fora das nossas fronteiras… Foi uma época de pleno emprego em Bicas. Conheci e conheço até hoje amigos e vizinhos que trabalharam lá e têm orgulho de falar dos produtos da fábrica de calçados Almirante e mais tarde Francurzio… Os sapatos que nasceram lá, embelezaram os pés de muita gente e ajudou a aumentar a estima da terrinha… Bicas a seus pés.

Brotinho apaixonado

Cheguei do Ginásio Estadual, depois de uma prova de matemática difícil pra caramba…  Wilson Amorim jogou pesado! Quando fui colocar os cadernos sobre a escrivaninha, observei que caiu um papelzinho no chão. Peguei e notei que era um bilhetinho… Abri e li. Era quase uma declaração de amor.

Fui dormir com um sorriso de orelha a orelha. Na manhã seguinte, como sempre, meu colega de Senai me esperava na esquina da Rua do Brejo para irmos estudar. Com satisfação mostrei o bilhetinho para ele, e com seu humor costumeiro, foi tirando onda: “você sabe que eu tenho um curso por correspondência de decifração de letras, sonhos e também sei ler mãos. Esse brotinho está apaixonado”, e continuou: ”imagina achar um olhar sensual numa cara de mocorongo dessa” e deu uma risada sarcástica.

Não achei muita graça, mas fomos indo para a escola. Depois de um certo tempo e mais alguns bilhetinhos, e contando com minha astúcia, consegui identificar o brotinho. Cheguei perto dela com um pouco de receio e começamos a conversar. Ela mais atirada do que eu, confirmou ser a dona dos bilhetinhos. Levei-a até o portão de sua casa e beijamos pra danar. Foi um ótimo comprometimento e até desfilamos de mãos dadas pela praça São José… Bicas emocionante.

Suspiros e sussurros

O Clube Biquense se preparou com esmero para receber os biquenses num, baile badaladíssimo com a orquestra “Cassino de Sevilha”. As mesas todas com toalhas rendadas, flores e bebidas como brindes aos seus ocupantes. O salão estava bem encerado para os casais deslizarem seus passos ritmados.

O máximo que consegui, foi estrear uma roupa nova e comprar o ingresso que estava majorado seu preço. Mas nem por isso deixei de centrar no meu objetivo: um brotinho que estava me dando bola há vários dias. Por conta disso, me preparei para o grande baile, pois sabia que minha paquera estaria presente.

Me lembro daquela gravata azul combinando com a camisa rosa e a calça xadrez. Sapatos “cavalo de aço” e muita vontade de chegar no brotinho, que estava linda, com uma tiara florida no cabelo, um vestido amarelo com um cinto de fivela larga realçando sua cintura de “vespa”.

Eu já havia tomado um gin tônica para aumentar a coragem, masquei um chiclete de caixinha (Adams) para dar frescor e maciez à voz na hora do lero.  Assim, naquela hora em que a orquestra começou a seleção de músicas lentas, eu ansiosamente, procurei e a encontrei… Convidei-a para dançar e saímos bailando pelo salão lotado. Nos distanciamos dos pais dela e encostamos nossos rostos.

Sussurrei no seu ouvido palavras ensaiadas durante a semana toda e senti seus suspiros bem perto e não resisti… Discretamente beijei o cantinho de sua boca. Ela também não aguentou e cedeu todos os seus lábios carnudos e macios. Dançamos mais algumas músicas e ficamos comprometidos por um bom tempo… Bicas apaixonada.

Carta aberta ao meu amigo

Zé, na noite passada eu sonhei com você. Quando me levantei, fiquei me perguntando por que nós sonhamos com alguém? Lucubrei pra lá e pra cá, não chegando a conclusão nenhuma.

Mas, no caso, eu deparei com várias explicações… Nós nos conhecemos através do juvenil do Leopoldina e não paramos mais. Estivemos juntos em várias situações alegres e tristes, ajudamos e fomos ajudados por outros amigos comuns; porém, a razão da longevidade da nossa amizade, está naquilo que ela sempre representou para nós dois: a sinceridade e nunca usamos da hipocrisia.

Você flamenguista, eu vascaíno. Politicamente, nunca deixamos as divergências passarem do limite da nossa amizade, que sempre foi o principal… Você sempre destacou isso. A coisa que sempre invejei em  você, é o tamanho do seu coração. Isso certamente influencia até hoje na energia positiva quando nos abraçamos…

Estou aqui agora tomando um vinho que uma amiga trouxe para o nosso almoço. Ela também é uma figura presente no meu coração. Como você pode perceber, sou um privilegiado, por ter verdadeiros amigos. José Augusto Lamarca: fica aqui a prova do meu carinho e consideração por uma pessoa que me ensinou a amar a diferença. Abraço fraterno do seu irmão… Bicas aconchegante.

Ideias avançadas

Quando ele chegou em Bicas, era um jovem adulto. Substituiu um pároco que ainda gostava de celebrar missa em latim e só tirava a batina para dormir. A sociedade conservadora estava em choque com a modernidade: pílula anticoncepcional, divórcio, maconha, rock and roll, cabeludos e etc.

Padre Manoel, com sua sagacidade e inteligência, entendeu o recado da onda que os costumes estavam passando. Nunca ficou de costas para os fiéis durante o culto… Saiu de trás do altar e foi conhecer o dia a dia principalmente dos mais necessitados. Se tornando, com isso, um padre popular e engajado nas causas do povo.

Os conservadores, ao mesmo tempo que se sentiam ofendidos, o respeitavam, pois, apesar de assustados com a novidade do procedimento de um padre para aquela época, confiavam no seu poder. Alguns se afastaram da igreja se sentindo ofendidos com a quebra de procedimentos daquele pequenino homem.

Padre Manoel andava como um simples mortal pelas ruas, gostava de bater papo e era chegado a uma “branquinha”. Eu, por exemplo, tomei uma carraspana com ele lá no “Copo Limpo”. Foi um ótimo professor de português… Era contra o celibato. Por isso, mais tarde largou a batina e se casou. Tornou-se prefeito de Bicas, derrotando os conservadores, num pleito que mostrou sua força popular.

Nosso pároco teve uma vida atribulada, depois que saiu do clero, sucumbindo-se no álcool. Pouco antes de morrer de cirrose foi aceito novamente pela igreja, numa demonstração de reconhecimento do seu trabalho. Por fim, foi homenageado com um busto de bronze ao lado da matriz… Bicas modernizando.

Discurso sóbrio

Zé d’Onofre chegou com uma garrafa de marafo na mão, subiu no beiral da ponte da Rua do Brejo e fez mais um discurso rotineiro: “Nunca vi um prefeito tão safado quanto esse aqui da nossa Bicas. Imaginem vocês que a Prefeitura virou cabide de emprego dos seus apaniguados… Tem gente que mora em Juiz de Fora e só vem aqui pegar a gaita…”.  

Deu mais uma golada na cachaça, pra molhar o bico, e continuou: “A cidade está abandonada, o córrego virou um esgoto a céu aberto, e o danado do mandatário fica fazendo festinha para agradar os ricos. Não sei como esse sujeito enriqueceu com o seu trabalho… Acho que anda metendo a mão no dinheiro do povo.”  

Parou, deu uma respirada e uma cusparada… Antes de descer do palanque, terminou: “Certamente, esse desgraçado vai queimar nas chamas do inferno… Só fica sentado naquela cadeira almofadada, rodeado por um bando de chupins. Viva o dotô Oliveira e tenho dito.”

Nós, que paramos nossa pelada para ouvi-lo, aplaudimos de pé… Bicas politicando!

Abajur lilás

No meu tempo de juventude, lá pelos idos dos anos 70, era comum os homens frequentarem a “zona”… Bicas chegou a ter três prostíbulos. O mais frequentado, por questão de tradição e logística, era o “complexo da Tia Rita.

Por lá se via pais levarem seus filhos para a iniciação sexual e, no outro extremo, exigiam que suas filhas casassem virgem. Na Tia Rita havia várias casas com suas cafetinas… Teresa era uma delas: balzaquiana, discreta em público, mas entre quatro paredes se transformava, pois sabia todos os caminhos e segredos para ter os homens aos seus pés, principalmente, na horizontal. Era sempre requisitada para fazer o batismo dos filhos daqueles que mantinham a tradição.

Vez por outra se via algum mancebo sair extasiado do quarto de Teresa e certamente virava freguês cativo. Nós outros, que não tínhamos pais ricos, e muito menos tradição, ficávamos sempre naquela de juntar um dinheirinho para visitar o quarto daquela mulher que vivia na nossa imaginação.

 Não sei o paradeiro de Teresa, como também sei que a vida dela não era nada fácil. Sempre rodeada de homens que a desejavam, mas solitária lutando para sobreviver num ambiente hostil. As lembranças que tenho dela são de uma pessoa querida por muitos e sem ninguém…Bicas sem camisinha.